IGREJA E ESTADO NA HISTÓRIA DO BRASIL
No final da Idade Média, a forte integração entre o estado e a igreja na Península Ibérica deu origem ao fenômeno conhecido como padroado ou patronato. Pelo padroado, a Igreja de Roma concedia a um governante civil certo controle sobre uma igreja nacional, em apreciação por seu zelo cristão e como incentivo a futuras “boas obras”. Entre 1455 e 1515 quatro papas concederam direitos de padroado aos reis portugueses, que assim foram recompensados por seus esforços em derrotar os mouros, descobrir novas terras e trazer outros povos à cristandade.
A descoberta e colonização do Brasil foi um empreendimento conjunto do estado português e da Igreja Católica, no qual a coroa desempenhou o papel predominante. O estado forneceu os navios, financiou o empreendimento, construiu as igrejas e pagou o clero, mas também teve o direito de nomear os bispos, recolher os dízimos, aprovar documentos e interferir em quase todas as áreas da igreja.
Com a vinda do primeiro governador-geral, Tomé de Souza, também chegaram os primeiros jesuítas, liderados pelo padre Manoel da Nóbrega (1549). Por 210 anos eles foram os principais missionários e educadores no Brasil. Alguns deles foram defensores dos índios, como o celebrado padre Antonio Vieira (1608-97). Ao mesmo tempo, os jesuítas tornaram-se os maiores proprietários de terras e senhores de escravos do Brasil colonial.
Em 1759 os jesuítas foram expulsos de todos os territórios portugueses pelo Marques de Pombal (1751-77), Sebastião José de Carvalho e Melo, o primeiro-ministro de D. José I. Por causa de sua riqueza e influência, eles tinham muitos inimigos entre os líderes eclesiásticos, proprietários de terras e autoridades civis. Sua expulsão resultou tanto do anticlericalismo que se alastrava pela Europa, quanto do regalismo de Pombal, a noção de que todas as instituições da sociedade, principalmente a igreja, devem ser inteiramente subservientes ao rei.
Desde o início da colonização, a coroa portuguesa foi lenta em seu apoio à igreja: a primeira diocese foi fundada em 1551, a segunda somente em 1676 e em 1750 havia apenas oito dioceses no vasto território. Nenhum seminário para o clero secular foi criado até 1739. Todavia, a coroa nunca deixou de recolher os dízimos, que vieram a ser o principal tributo colonial. Com a expulsão dos jesuítas, que eram em grande parte independentes das autoridades civis, a igreja tornou-se ainda mais fraca.
Durante o período colonial, o Brasil manteve-se isolado, sendo inteiramente vedada a entrada de protestantes, principalmente após as invasões dos franceses (1555-67) e holandeses (1624-54). Porém, com a chegada da família real em 1808, abriram-se as portas do país para a entrada legal dos primeiros protestantes, os seja, os ingleses. (Ver Reily, 40; Matos, 71).
Com a independência, surgiu a necessidade de atrair imigrantes europeus, inclusive protestantes. A Constituição Imperial, promulgada em 1824, concedeu-lhes certa liberdade de culto, ao mesmo tempo em que confirmou o catolicismo como religião oficial. (Ver Reily, 42; Matos, 73). Até a proclamação da república, os protestantes enfrentariam sérias restrições no que diz respeito ao casamento civil, uso de cemitérios e educação.
Desde o séc. XVIII, começaram a tornar-se influentes no Brasil novos conceitos e movimentos surgidos na Europa, tais como o iluminismo, a maçonaria, o liberalismo político e os ideais democráticos americanos e franceses. Tais idéias tornaram-se especialmente influentes entre os intelectuais, políticos e sacerdotes, e tiveram dois efeitos importantes na área religiosa: o enfraquecimento da Igreja Católica e uma crescente abertura ao protestantismo.
O liberalismo de muitos religiosos brasileiros, inclusive bispos, é ilustrado pelo padre Diogo Antonio Feijó (regente do império em 1835-37), que em diferentes ocasiões propôs a legalização do casamento clerical, sugeriu que os Irmãos Morávios fossem convidados para educar os índios e defendeu um concílio nacional para separar a igreja brasileira de Roma.
D. Pedro II (1841-89) utilizou plenamente seus direitos legais de padroado, bem como os poderes adicionais do recurso (em casos de disciplina eclesiástica) e do “placet” (censura de todos os documentos eclesiásticos antes de sua publicação no Brasil), em virtude da sua preocupação com o ultramontanismo. Um autor comenta que, durante o longo reinado de Pedro II, a igreja não passou de um departamento regular do governo.
Todavia, no pontificado de Pio IX (1846-78) Roma começou a exercer um maior controle sobre a igreja brasileira. As idéias da encíclica Quanta cura e seu Sílabo de Erros tiveram rápida difusão, apesar de não receberem o placet de Pedro II. O Sílabo atacou violentamente a maçonaria numa época em que os principais estadistas brasileiros e o próprio imperador estavam ligados às lojas. Isto acabou desencadeando a famosa Questão Religiosa (1872-75), um sério confronto entre o governo e dois bispos (D. Vital Maria Gonçalves de Oliveira e D. Antônio de Macedo Costa) que enfraqueceu o império e contribuiu para a proclamação da república. (Ver Matos, 43).
A Questão Religiosa marcou o início de uma renovação católica que se aprofundou no período republicano. À medida que afirmava a sua autonomia diante do estado, a Igreja tornou-se mais universalística, mais romana. O próprio sacerdócio tornou-se mais estrangeiro. Ao mesmo tempo, ela teve de enfrentar a concorrência de outros grupos religiosos e ideologias, além do protestantismo, tais como o positivismo e o espiritismo.
O séc. XIX testemunhou um longo esforço dos protestantes para obter completa legalidade e liberdade no Brasil, 80 anos de avanço lento, porém contínuo, em direção à plena tolerância (1810-90). Um passo importante na conquista da liberdade de expressão e de propaganda ocorreu quando o Rev. Roberto R. Kalley, pressionado pelas autoridades, consultou alguns juristas destacados e obteve opiniões favoráveis quanto às suas atividades religiosas. (Ver Reily, 104). Finalmente, em 1890, um decreto do governo republicano consagrou a separação entre a igreja e o estado, assegurando aos protestantes pleno reconhecimento e proteção legal. (Ver Reily, 224).
Em fevereiro de 1891, a primeira constituição republicana proclamou a separação entre a igreja e o estado, bem como outras medidas liberais tais como a plena liberdade de culto, o casamento civil obrigatório e a secularização dos cemitérios. Sob influências liberais e positivistas, a constituição omitiu o nome de Deus, afirmando assim a caráter não religioso do novo regime, e a Igreja Católica foi colocada em pé de igualdade com todos os outros grupos religiosos; a educação foi secularizada, a religião sendo omitida do novo currículo. Em uma carta pastoral (março de 1890), os bispos deram as boas-vindas à república, mas também repudiaram a separação entre a igreja e o estado.
A partir de então, a igreja teve duas grandes preocupações: obter o apoio do estado e aumentar a sua influência na sociedade. Um dos primeiros passos foi fortalecer a estrutura interna da igreja: criaram-se novas estruturas eclesiásticas (dioceses, arquidioceses, etc.) e fundaram-se novos seminários. Foi incentivada a vinda de muitos religiosos estrangeiros para o Brasil (capuchinhos, beneditinos, carmelitas, franciscanos). A igreja também manteve sua firme oposição contra a modernidade, o protestantismo, a maçonaria e outros movimentos.
Dois grandes líderes foram especialmente influentes nesse esforço renovador: primeiro, o padre Júlio Maria, que, de 1890 até a sua morte em 1916, foi muito ativo como pregador e escritor, visando mobilizar a igreja e tornar o Brasil verdadeiramente católico. Mais notável foi D. Sebastião Leme da Silveira Cintra (1882-1942), o líder responsável pela orientação e mobilização da Igreja Católica brasileira na primeira metade do séc. XX, como arcebispo de Olinda e Recife (1916-21), coadjutor no Rio de Janeiro (1921-30) e cardeal arcebispo do Rio até a sua morte. (Ver Matos, 56-58).
Em 1925, D. Leme propôs emendas à constituição que dariam reconhecimento oficial à Igreja Católica como a religião dos brasileiros e permitiriam a educação religiosa nas escolas públicas. As chamadas emendas Plínio Marques enfrentaram a vigorosa oposição dos protestantes, maçons, espíritas e da imprensa, sendo eventualmente rejeitadas. Porém, sob Getúlio Vargas, a Constituição de 1934 finalmente incluiu todas as exigências católicas.
Na década de 1920, a Comissão Brasileira de Cooperação, liderada pelo Rev. Erasmo de Carvalho Braga (1877-1932) procurou unir as igrejas evangélicas na luta pela preservação dos seus direitos e no exercício de um testemunho profético junto à sociedade brasileira. Esse esforço teve prosseguimento até os anos 60 na Confederação Evangélica do Brasil. Após 1964, as relações entre as igrejas evangélicas, por um lado, e a Igreja Católica, por outro lado, com o estado brasileiro, tomaram rumos por vezes diametralmente opostos, cujas profundas conseqüências fazem-se sentir até os nossos dias.
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