O PERÍODO DA REFORMA PROTESTANTE (1517-1648)
O estopim da Reforma foi um acontecimento que demonstrou até que ponto a cumplicidade entre a igreja e o estado era danosa para a vida moral e espiritual da cristandade. Desde 1356, o monarca do Sacro Império Romano era escolhido por um colégio eleitoral composto de três arcebispos (de Mainz, Trier e Colônia) e quatro nobres (o conde palatino do Reno, o duque da Saxônia Eleitoral, o margrave de Brandenburgo e o rei da Boêmia). O arcebispado de Mainz encontrava-se vago e a poderosa família dos Hohenzollern – à qual pertencia o margrave de Brandemburgo – quis tomar para si aquele cargo e assim ter um segundo voto na eleição do imperador. O escolhido para o cargo, Albrecht, um irmão do margrave, estava com dois problemas: não tinha a idade para ser um arcebispo e nem mesmo havia sido ordenado. Assim sendo, os Hohenzollern “compraram” o arcebispado para Albrecht. A dispensa papal especial que permitiu-lhe ocupar aquele cargo custou uma elevada soma de dinheiro, que foi tomada por empréstimo a juros exorbitantes da famosa casa bancária Fugger, de Augsburgo. Para pagar o empréstimo, Albrecht, agora arcebispo, recebeu de Leão X o direito de vender indulgências, metade dos lucros indo financiar a construção da catedral de São Pedro. (Ver Kee, Christianity, 342.) O restante da história todos conhecemos.
Com a Reforma Protestante rompeu-se a unidade da igreja ocidental e surgiu uma variedade de igrejas nacionais. Algumas continuaram a ter comunhão com o papa ao mesmo tempo em que reivindicavam um grau considerável de independência nacional (por exemplo, o galicanismo na França). Outras como a luterana, a reformada e a anglicana, rejeitaram a autoridade papal. Os luteranos e os anglicanos estavam muito mais inclinados que os reformados (calvinistas) a deixar o poder civil (o “príncipe cristão”) governar a igreja. Todavia, a idéia aceita era que em cada país a igreja e o estado formavam uma comunidade: na Inglaterra, Richard Hooker foi o expoente clássico dessa idéia em sua grande obra As Leis da Política Eclesiástica (1594): “Não há nenhum membro da Comunidade que também não o seja da Igreja da Inglaterra” (citado em McManners, 277). A unidade religiosa era considerada necessária para a coerência e estabilidade política de uma nação.
Em lugar da teoria medieval da autoridade última dos papas em questões referentes à igreja e ao estado, os Reformadores apresentaram várias abordagens distintas. Martinho Lutero (†1546) traçou uma nítida distinção entre as áreas temporal e espiritual, mas considerou muitas funções, tal como a administração, como sendo não essenciais. Portanto, a maior parte dos estados luteranos desenvolveram um sistema territorial “erastiano” no qual os príncipes superintendiam questões eclesiásticas. Erastianismo foi a concepção defendida pelo suíço Thomas Erastus (1524-83), professor de medicina na Universidade de Heidelberg, de que o estado tinha o direito de exercer suprema autoridade sobre a igreja em todas as questões. Na realidade, essa doutrina foi mais defendida pelo jurista holandês Hugo Grócio (1583-1645) do que por Erasto.
João Calvino (†1564) procurou fazer uma clara distinção entre as esferas de ação da igreja e do estado, crendo que era dever do segundo manter a paz, proteger a igreja e seguir normas bíblicas nas questões civis. Em geral, Genebra e as igrejas reformadas da Europa tentaram seguir as suas idéias e evitar a dominação civil. O modelo político-eclesiástico vigente em Genebra na época de Calvino tem sido erroneamente denominado de teocrático. Sobre as idéias de Calvino quanto a igreja e estado, ver González, Thought III, 172-74.
Os anabatistas e outros reformadores radicais insistiram, a partir do seu entendimento das Escrituras e das suas próprias experiências, na necessidade da completa separação entre a igreja e o estado. A sua posição pareceu tão anárquica naquela época que eles foram duramente perseguidos por todos os outros grupos, protestantes e católicos. Por sua vez, os anabatistas transmitiram suas concepções sobre a igreja e o estado a outros movimentos congêneres na Inglaterra do séc. XVII: batistas, quakers e independentes.
Mais do que quaisquer outros grupos religiosos dos sécs. XVII e XVIII, os de convicção batista patrocinaram o conceito de que a conseqüência lógica da doutrina da liberdade religiosa era o princípio da separação entre a igreja e o estado. Com base em passagens como Mt 22:15-22 e Rm 13:1-7 eles argumentaram que esse era o único meio de salvaguardar a liberdade religiosa e o sacerdócio dos crentes. Com isso eles queriam dizer que o estado não tinha o direito de interferir nas crenças e práticas religiosas dos indivíduos e das igrejas, e que a igreja, por sua vez, não tinha o direito de receber qualquer sustento financeiro do estado. Receber verbas públicas era abrir as portas para o controle governamental e a perda da identidade religiosa.
Politicamente, o período da Reforma evidenciou uma constante interação entre as igrejas e os poderes constituídos. Na Alemanha, Lutero só teve êxito em sua empreitada graças às ações decididas do príncipe eleitor da Saxônia, Frederico, o Sábio, que o protegeu das investidas do imperador Carlos V (1519-56), o chefe do Sacro Império Romano. Quando do seu célebre comparecimento à Dieta de Worms (1521), Lutero foi colocado sob interdito imperial, sendo ocultado por Frederico no castelo de Wartburgo. O Edito de Worms determinou a supressão do luteranismo.
O imperador Carlos V, necessitado do apoio dos príncipes alemães na luta contra a aliança franco-otomana, fez concessões aos luteranos na Dieta de Spira em 1526. Na próxima Dieta de Spira (1529), Carlos V exigiu que fosse anulada a decisão anterior e que o Edito de Worms fosse aplicado. O forte protesto dirigido ao imperador deu aos seus signatários o nome histórico de “protestantes”. As decisões dessa Dieta fizeram com que os luteranos e zuinglianos se reunissem para tentar formar uma frente unida contra os católicos. O célebre Colóquio de Marburg (1529), realizado no castelo do príncipe Filipe de Hesse, não chegou a bom termo, porque as duas partes, tendo concordado acerca de 14 artigos, divergiram sobre o 15º, no que diz respeito à presença de Cristo na Santa Ceia.
As disputas territoriais entre luteranos e católicos resultaram num período de guerras que terminou em 1555 com a Paz de Augsburgo, que deu legalidade ao luteranismo mediante o princípio “cuius regio, eius religio”. A tentativa de um grupo anabatista radical de implantar uma teocracia na cidade de Münster, resultou em violência e mortandade (1532-35).
Na Suíça, a reforma de Zuínglio dependeu do apoio do conselho municipal de Zurique. Foi esse mesmo conselho que puniu ou executou cruelmente os anabatistas por se oporem à obra de Zuínglio e à unidade religiosa vista como indispensável para a proteção dos cantões protestantes (1526). O próprio reformador morreu numa batalha contra os cantões católicos, a chamada Segunda Batalha de Kappel (1531).
Em Genebra, a implantação da Reforma também teve uma forte conotação política, ocorrendo no contexto de uma insurreição contra os dominadores católicos da Casa de Savóia e a simultânea aproximação do cantão protestante de Berna. A Igreja Reformada de Genebra era uma igreja estatal e durante a maior parte do seu ministério Calvino teve sérias dificuldades com as autoridades civis. Diz Carter Lindberg: “É um erro concluir que Calvino transformou Genebra em um estado policial teocrático. Antes, durante a maior parte da sua carreira, ele teve de lutar para manter a sua autoridade” (Kee e outros, Christianity, 382).
A interferência do poder civil nos rumos da igreja foi especialmente intensa e decisiva na Inglaterra. Nesse país, a implantação da Reforma resultou diretamente da ação dos soberanos. Respaldado pelo antigo sentimento nacionalista e anti-clerical dos ingleses, Henrique VIII (1509-47) transformou a igreja inglesa em uma igreja nacional, separada de Roma, através do Ato de Supremacia (1534), em que o rei foi declarado o “protetor e único chefe supremo da Igreja da Inglaterra”. Graças aos tutores do seu filho Eduardo VI (1547-53), a igreja inglesa tornou-se protestante, sendo aprovados o Livro de Oração Comum (1549-52) e os Quarenta e Dois Artigos (1553). Após uma breve e sangrenta tentativa de retorno ao catolicismo sob Maria Tudor (1553-58), sua enérgica irmã Elizabete I (1558-1603), outra filha de Henrique VIII, tornou a Inglaterra definitivamente protestante.
A Escócia tornou-se presbiteriana por ação do parlamento, no contexto da luta contra os franceses. Os principais protagonistas foram, de um lado a rainha Maria Stuart (1542-87), que após viver muitos anos na França, a terra de sua mãe, retornou à Escócia para tomar posse do trono em 1561; de outro lado, o reformador John Knox (†1572), que tornara-se discípulo de Calvino em Genebra e voltara à sua terra em 1559. Maria Stuart foi executada por ordem de Elizabete em 1587.
O conflito político-religioso foi particularmente complexo e violento na França. A facção ultra-católica (família Guise-Lorraine) concentrava-se no norte e leste do país, ao passo que os reformados ou huguenotes eram mais fortes no oeste e sudoeste (famílias Bourbon e Montmorency). Francisco I (1515-47) e seu filho Henrique II (1547-59) mostraram-se crescentemente hostis aos reformados. Sob Francisco II (1559-60) aumentou a influência dos Guises. No reinado de Carlos IX (1560-74), a regente Catarina de Médici inicialmente mostrou-se tolerante para com os huguenotes, buscando uma aproximação entre eles e os católicos no fracassado Colóquio de Poissy (1561). Seguiu-se um período de guerras religiosas (1562-98), que teve como seu episódio mais brutal o massacre do Dia de São Bartolomeu (24-08-1572), em que milhares de huguenotes foram mortos. Em 1598, o Edito de Nantes concedeu tolerância limitada aos reformados.
Nos Países Baixos, calvinistas, luteranos e anabatistas sofreram forte repressão por parte de Carlos V, Filipe II (1555-98) e o famigerado Duque de Alba (1567). O protestantismo difundiu-se no contexto da luta contra a tirania espanhola, luta essa liderada pelo príncipe alemão Guilherme de Orange (†1584), um grande defensor da plena liberdade religiosa. Eventualmente os Países Baixos dividiram-se em Holanda (protestante) e Bélgica e Luxemburgo (católicos). O período da Reforma terminou no continente europeu com a Paz de Westfália (1648), que pôs fim à Guerra dos Trinta Anos.
No séc. XVIII, teóricos iluministas dos direitos naturais como John Locke e Hugo Grócio popularizaram a noção de que o governo civil estava baseado em um contrato social e não na ordenança de Deus. Armados com esse conceito, os estados nacionais emergentes tenderam a tornar a igreja subserviente ao bem-comum da sociedade e passaram a esperar que a religião institucional se mantivesse distante das questões políticas. Todavia, o desenvolvimento desse conceito na Europa e no restante do mundo foi desigual, e ressurgiram tentativas de controle da igreja pelo estado. Somente nos recém-criados Estados Unidos da América o governo concordou explicitamente com um novo sistema que buscou garantir a liberdade religiosa através da separação entre a igreja e o estado.
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