A CIÊNCIA E A SABEDORIA FALOU DANIEL, DIZENDO: SEJA BENDITO O NOME DE DEUS DE ETERNIDADE A ETERNIDADE, PORQUE DELE SÃO A SABEDORIA E A FORÇA; DANIEL 2:20
Para todos os efeitos, esse artigo vai se limitar a interpretação
formulada durante a Idade Média, não se envolvendo com a variada terminologia –
na maior parte das vezes divergente – que abrange a Filosofia da Linguagem, a
epistemologia atualmente e a reboque, a Teologia. Esse binômio, cunhado desde a
Idade Média, remete com certa naturalidade – devido talvez a vasta bibliografia
consolidada a respeito – a fazer uma
associação genuína entre a filosofia e a teologia. Embora essas disciplinas
estejam muito bem delimitadas para nós leitores e estudiosos contemporâneos das
Escrituras Sagradas, nem sempre foi assim. A distinção entre um e outro
conceito, a saber, sabedoria e ciência,
é um tema que vem se desenvolvendo e sendo debatido desde o período em que a
Filosofia Medieval estava em franco desenvolvimento e a Teologia era ainda uma
relativa novidade como disciplina acadêmica. Dado que não havia a delimitação
clara entre filosofia e teologia, os autores medievais preferiam tratar por
philosophia Christi (a filosofia de Cristo) textos relacionados à
espiritualidade, tanto que muitos textos que somos levados a crer como
teológicos tendem muito mais a exortações morais ou reflexões sobre as
Escrituras. Para o próprio Agostinho
de Hipona, o termo teologia soaria completamente estranho, se comparado ao
conceito estabelecido atualmente. No seu antológico livro “A Cidade de Deus”,
ele estabeleceu um contraste entre a philosophia Christi e as três esferas da
teologia pagã do filósofo Varro: Teologia Civil, que era focada nas atividades
de culto de vários grupos cívicos e étnicos; Teologia Mítica, que englobava os
mitos que tratavam dos deuses cantados por poetas como Homero e Hesíodo; Teologia
Natural, que considerava os argumentos dos filósofos a respeito da existência e
natureza dos deuses. Muito embora a Teologia Natural provesse argumentos
tipicamente filosóficos que poderiam adequar-se ao pensamento cristão,
Agostinho resistia quanto à proeminência que pudessem ter entre os cristãos tal
qual o faziam os filósofos pagãos. Ele pensava numa espécie de escala
hierárquica, cujo ápice deveria coincidir unicamente com a elucidação das
Escrituras, sem espaço para nada além disso. Sobretudo, ele não negava a força
e a importância de uma argumentação sólida e bem estruturada herdadas da
filosofia, porém seu uso deveria se restringir, no máximo, a aclarar e servir de
apoio no entendimento da Revelação Divina. Os temas da sabedoria (sapientia) e
ciência (scientia) dominavam e usufruíam de grande atenção até mais que a
teologia e filosofia enquanto disciplinas distintas no Período Medieval. Para
uma elucidação satisfatória será preciso, a partir desse ponto, um certo grau
de abstração, demonstrando como se estruturava o pensamento de Agostinho, para
que a conclusão seja tão consistente quanto possível, mas sua compreensão deve
ser compensatória ao final. Agostinho propunha uma visão do mundo, se assim
poderia dizer, em três divisões hierárquicas; com o Deus Criador no topo, logo
abaixo, no espaço intermediário, ocupado pelas criaturas angelicais e as almas,
incluindo a mente humana; e na base – ou hierarquicamente na posição mais
inferior – estaria a vastidão do mundo físico, mas ainda assim, boa, porque
criada pelo Deus que é sumamente bom. Para cada um desses níveis corresponderia
uma relação, ou princípio que explicaria sua estrutura e como os entendemos. No
nível do mundo físico ou natural, ele identificou os “princípios seminais“,
plantados por Deus no mundo criado e que dirigiam o desenvolvimento dos corpos
físicos. No nível da mente de Deus, ele identificou os princípios eternos
(rationes aeternae) tais como protótipos para tudo o que Ele cria. Como
pensamentos da mente divina, eles são imutáveis, necessários e eternos. Entre
os níveis inferiores e superiores da realidade, no nível intermediário da
realidade estariam as inteligências angelicais e a ratio hominis, ou a alma
racional humana. A posse de uma alma racional não só distingue a essência humana e a
inteligibilidade da natureza humana, como também torna a mente humana capaz de
entender outras coisas das esferas da realidade, tanto acima como abaixo. Dada
sua posição intermediária, essa alma racional é capaz de entender as criaturas
do mundo físico ou natural através da ratio inferior (razão inferior ou razão
direcionada às coisas inferiores), bem como contemplar as razões eternas
através da ratio superior (razão superior ou direcionada às coisas superiores).
Enquanto o objetivo da razão superior é a sabedoria (sapientia) alcançada
através da contemplação, o objetivo da razão inferior é o conhecimento das
coisas no mutável mundo do tempo (scientia). Esse tipo de conhecimento é mais
restrito que a sabedoria e sujeito a erros, no entanto imprescindível para a
vida prática. Para Agostinho a sabedoria já estaria mais associada ao
conhecimento da eterna e imutável verdade procedente da mente de Deus. As
coisas temporais estão ligadas ao tempo, sua corrupção e constante alteração,
antagonizando com a contemplação das coisas eternas. O primeiro ligado à
ciência (scientia) e o segundo à
sabedoria (sapientia). Quando um discurso se refere às coisas temporais,
corruptíveis e passageiras ele se refere à ciência, no entanto, quando ele se
refere às coisas, não pelo que foram ou deveriam ser, mas pelo que são e
continuarão sendo, permanecendo inalteradas e imunes à corrupção do tempo, se
refere à sabedoria. Coisas eternas permanecem, não como algo fixado em algo,
perceptível tal como um objeto, mas como algo inteligível percebido na natureza
incorpórea; tão evidentes à percepção da nossa mente tanto quanto as coisas
visíveis e tangíveis o são para os nossos sentidos. Posto que esse é o
julgamento correto sobre a distinção entre a sabedoria e a ciência e que o
conhecimento intelectual das coisas eternas pertence à sabedoria e o
conhecimento racional pertence às coisas mutáveis e corruptíveis, fica fácil
deduzir por qual deles deveria ser a preferência do cristão, quando nesse
impasse. Uma outra conclusão de Agostinho é que a mente humana precisa estar em
harmonia com as ideias eternas – a saber o que procede de Deus – para conhecer
qualquer verdade necessária que seja. Já a ciência seria aquele conhecimento
metódico sobre a verdade, quando muito, das coisas desse mundo que se mantém em
constante mudança, por essa razão que a vida voltada para o conhecimento das
verdades eternas (sabedoria) é superior à que se dedica ao conhecimento das
coisas passageiras desse mundo. A superioridade da sabedoria está sobretudo na
importância do seu fim último. Ora, a partir dessa articulação, o percurso
natural e evidente é o desmembramento que ocorre a partir dessa hierarquização
dos tipos de conhecimento que acaba por subordinar a razão à fé. Porém
Agostinho nunca repudiou a razão em favor das emoções pura e simples, antes sua
proposta vinha para definir uma rota segura pela qual o cristão poderia trilhar
na esperança e certeza de atingir uma vida plena em harmonia com as Escrituras
Sagradas e o desejo do Eterno. Sua famosa abordagem sobre a “fé em busca da
compreensão” (fides quaerens intellectum) sintetiza ambos os conceitos não como
antitéticos, mas mostra uma concepção na qual um conhecimento profundo da
realidade seria o fruto proporcionado pela fé. De certo modo a ciência deveria
conduzir à sabedoria, mas infelizmente, são muitos os que se perdem pelo
caminho, apostatam da fé e terminam como incrédulos porque deixam os ruídos e
apetrechos do mundo entulharem corações e mentes, não sobrando espaço para o
conhecimento real e verdadeiro que não se corrompe, a saber, o conhecimento do
Eterno. Não é à toa que o Salmista séculos antes já havia identificado isso:
“Minha boca falará de sabedoria, e a meditação do meu coração será de
entendimento” (Salmos 49:3). Bibliografia Cochrane, Charles Norris.
Christianity and Classical Culture: A
Study of Thought and Action from Augustus to Augustine. Indianapolis, IN:
Liberty Fund.; 2003.Randles, W. G. L. The
Unmasking of the Medieval Christian Cosmos, 1500–5000: From Solid Heavens to
Boundless Aether. Aldershott: Ashgate; 1999. O’Daly, Gerard. Augustine’s
Philosophy of Mind. Berkeley, CA: University of California; 1987. O’Connell,
Robert. The Origin of the Soul in St Augustine’s Later Works. Bronx, NY:
Fordham University Press; 1987. O que achou?, comente com sua opinião nos
comentários abaixo.
Nenhum comentário
Postar um comentário